O domínio de si e o cuidado de si

Por Jossânia Veloso

“Apressa-te a viver bem e pensa que cada dia é, por si só, uma vida”.

                                                                                  Sêneca (4 a.C – 65 d.C)

Tudo que fazemos na vida parece clamar por equilíbrio. Parece ser no equilíbrio, nessa fronteira tênue do viver que podemos encontrar a satisfação, a saúde, a felicidade, a realização… Os antigos filósofos já nos apontavam esse caminho como uma grande “resposta” às inquietações da vida. Ouvimos até falar de uma estética da existência, esmiuçada pelo pensador francês Michel Foucault (1926-1984), que retrata um estilo de vida, pregado na antiguidade greco-romana, cujo objetivo principal era a harmonia.

Entre os inúmeros aprendizados que podemos tirar desse período da filosófica, quero destacar dois pontos bastante estudados por Foucault: a enkrateia (o domínio de si) e a epimeléia heautou (o cuidado de si). Os dois conceitos, no entanto, estão implicados. A questão da enkrateia é fundamental porque ela se caracteriza, sobretudo, nas palavras do próprio pensador francês, “por uma forma ativa de domínio de si que permite resistir ou lutar e garantir sua dominação no terreno dos desejos e dos prazeres” (FOUCAULT, 2014). Porém, não em um sentido puramente moral, mas, no que poderíamos aduzir, em um aspecto mais pragmático. Ao citar os terapeutas[1], por exemplo, Foucault lembra que eles se retiravam para onde pudessem curar as doenças causadas por prazeres, desejos, desgostos, temores, cobiças, estultices, injustiças e outras paixões (FOUCAULT, 2014). O retiro dos terapeutas acontecia depois deles julgarem já terem cumprido sua vida “mortal”. Assim, deixavam tudo o que tinham, a filhos e familiares, e partiam para viver ao redor de Alexandria, a fim de cuidarem de suas almas. “O objetivo é: aprender a ver claro” (FOUCAULT, 2014). A tal ponto de poderem contemplar “Deus”! Eles eram terapeutas, entre outras coisas, porque praticavam o culto do Ser –cuidavam do Ser e da própria alma. Importante destacar que a terapêutica era uma forma de cuidados mais ampla, mais espiritual, menos diretamente física do que a dos médicos para a qual reservavam o adjetivo iatriké – que se aplica ao corpo.

Por que cuidar de si? Por que cuidar da alma? Para esses antigos isso implicava liberdade e a própria felicidade. O que por sua vez parece significar simplificação. A própria  enkrateia, esse domínio de si, parece exigir um despojamento, uma recusa de todo ornamento, mediante uma vontade assídua, para se chegar à verdade. Essa virtude é uma exigência da filosofia greco-romana da antiguidade clássica que deve estar presente, primeiramente, no mestre. “Aprender a cuidar de si significa saber governar-se. É clara a intersecção ético-política desses dois termos e suas correspondentes práticas. Só poderá ser bom governante da polis [por exemplo] quem antes tenha aprendido a governar sua vida” (RUIZ, 2015). E como governar sua vida? Como cuidar de si, sem exercer domínio sobre si?

Xenofante (430 – 354 a.C) afirma ser a enkrateia a base de todas as virtudes: “Não será, pois, necessário que qualquer homem, acreditando que o autodomínio é o pilar da virtude, nele fundamente a construção da sua alma?” (XENOFANTE, 2009). De Sócrates (469– 399 a.C.) ao estoicismo, passando por vários autores e várias escolas, essa ideia de cuidado de si e autodomínio ganham contornos importantes para definir o que é uma boa vida. Uma vida que vale a pena ser vivida. Nos dias atuais em que parecemos carecer de sentido, essa reflexão dos antigos, trazida à tona por um pensador contemporâneo, de novo nos faz repensar nossa relação com nós mesmos e com o nosso mundo. Quem somos, o que queremos de nossa vida, o que realmente importa, o que nos deixa realmente felizes. E, por que, não? O que é de fato essa tal felicidade? São perguntas recorrentes.

Mais de dois mil anos de filosofia ocidental, talvez, nos permitam tirar algumas conclusões, entre elas a de que viver implica, antes de qualquer coisa, saber viver. E isso demanda olhar para si mesmo, esse olhar atento do cuidado de si dos antigos; demanda, ainda, ter a noção exata da liberdade em nossos caminhos, assim como a capacidade de poder de fato escolhê-la, ou seja, ter autonomia para tanto. O que parece impossível sem o domínio de si.

Tanto esse cuidado quanto esse domínio podem ter significações diferentes de pessoa para pessoa, de tempos em tempos. No entanto, o cuidado de si e o domínio de si que vemos na antiguidade greco-romana parecem nos dar uma chave para essa busca eterna de quem somos nós e quem de fato desejamos ser.

 

Referências

FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito: curso dado do Collège de France (1981 – 1982). São Paulo: Martins Fontes, 2014b.

RUIZ, Castor Bartolomé. A Filosofia como forma de vida (II) Michel Foucault, o cuidado de si e o governo de si (enkrateia) in: Revista do Instituto Humanitas Unisinos Nº 466 | Ano XV 01/06/2015

XENOFANTE. Memoráveis. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos; Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009.

[1] Descritos por Fílon de Alexandria (15 a. C – 45 d.C) em seu Tratado da Vida Contemplativa, os terapeutas se autodenominavam assim porque praticavam a therapeutké.