Uso de bebidas alcoólicas durante um tratamento psiquiátrico

A ingestão de bebidas alcoólicas no uso de medicamentos

Por Janeth de Oliveira Silva Naves

Existem muitas dúvidas, mitos e verdades a respeito do uso de bebidas alcoólicas durante o tratamento medicamentoso. O presente texto procura esclarecer as principais dúvidas sobre o tema, de forma a contribuir para a prevenção de reações desagradáveis e danosas à saúde.

A ingestão de bebidas alcoólicas, como sobrecarga aguda ou em uso crônico, tem alto potencial de interação com vários medicamentos, porém por motivos éticos não se realizam estudos para demonstrar a relação entre as doses dessas bebidas e as possíveis influências sobre os tratamentos farmacológicos. Existem apenas relatos das reações decorrentes da utilização simultânea e inferências teóricas com base nos mecanismos de ação. Isso dificulta a avaliação e a quantificação do problema e permite apenas recomendações e alertas sobre o que se deve evitar.

Os caminhos do etanol no organismo

O etanol é o principal componente das bebidas alcoólicas, com teor variável nas diferentes bebidas. A absorção do etanol é rápida, ocorre no estômago e, principalmente, no intestino delgado. A presença de alimento retarda o esvaziamento gástrico, o que diminui a velocidade da sua absorção e a intensidade dos seus efeitos. Após a absorção, o etanol se distribui rápida e amplamente em todos os tecidos do corpo, com uma biodisponibilidade de quase 100%, atingindo concentrações cerebrais semelhantes às do sangue. O metabolismo ocorre, majoritariamente, no fígado onde cerca de 90% do etanol é removido por ação de enzimas hepáticas, o restante é eliminado inalterado na urina e no ar expirado.

Como acontece a interação entre os medicamentos e o etanol

A interação medicamentosa é um evento caracterizado pela alteração da ação de um medicamento ou fármaco na presença de outro, como também na presença de alimentos ou de bebidas alcoólicas. Essas interações dependem do mecanismo de ação dos fármacos e da ação do etanol sobre o organismo, mas também podem ser influenciadas pela quantidade de bebida ingerida, pelo intervalo entre o uso, assim como pelas características ou estado fisiológico do usuário, tais como a capacidade de metabolização do fígado e de eliminação renal, a idade, a massa corporal e a etnia do indivíduo, entre outros. Os efeitos dessas interações podem ser bilaterais: o etanol interferindo com o efeito dos fármacos ou estes interferindo com os efeitos do álcool.

As interações entre fármacos e etanol podem ocorrer por diversos mecanismos e os efeitos produzidos são também diferentes. De maneira simplificada, os principais mecanismos de interação compreendem a sobrecarga metabólica exercida pelo etanol, comprometendo as vias metabólicas hepáticas, o que interfere na atividade de enzimas do fígado, que é também o principal responsável pelo metabolismo da maioria dos medicamentos. Adicionalmente, pode ocorrer ação direta do etanol sobre a diurese ou uma sobrecarga renal pela excreção do álcool, o que poderá afetar a eliminação de alguns fármacos pela urina.

O etanol também exerce efeito sobre o pH (grau de acidez) do estômago com efeito sobre a absorção de fármacos e nutrientes e sobre a motilidade intestinal, que resulta na passagem mais rápida de determinados medicamentos pelo estômago e duodeno, com consequente redução da absorção e dos níveis dos fármacos no sangue.

Entre os principais mecanismos de interação está também a possibilidade de ocorrência de competição do etanol pelos receptores ou sítios de ação de alguns fármacos.

Recomendações

Os profissionais de saúde devem investigar o uso frequente de bebidas alcoólicas antes de prescreverem medicamentos que ofereçam risco potencial de interação com o etanol. E a pessoa que está recebendo uma receita, tem a reponsabilidade de informar ao prescritor sobre seus hábitos de consumo dessas bebidas, principalmente se faz uso em grandes quantidades ou de forma frequente.

Antes de utilizar qualquer medicamento, o usuário deve ler a bula. No item “Interações” pode-se encontrar a informação sobre a possibilidade de interação, sobre a gravidade e se há uma contraindicação expressa, ou seja, nenhuma quantidade de etanol é permitida. Outro aspecto importante é respeitar o tempo de duração do efeito do medicamento antes de consumir bebidas alcoólicas. Consulte na bula, no item “Farmacocinética”, o tempo que o organismo levará para eliminar toda a substância ativa. É somente depois desse período que o consumo de bebida alcoólica volta a ser seguro se houver o risco de interação. Esse tempo pode variar de algumas horas a alguns dias, dependendo das características de cada fármaco.

Na dúvida, o melhor é não ingerir bebida alcóolica durante o tratamento. Se existir a possibilidade de interação, opte por opções de bebidas sem álcool durante o tratamento.

A prática da interrupção do tratamento para ingerir bebidas é totalmente desaconselhada, devido à perda do efeito e da proteção do medicamento pela demora em se alcançar novamente níveis satisfatórios do fármaco nos sangue e nos sítios de ação. Por exemplo, quando se interrompe o uso de antidepressivos para beber, pode demorar dias ou até semanas para se recuperar o efeito desejado do medicamento, devido à necessidade de adaptação dos receptores neuronais.

Para finalidades práticas, a ingesta de bebidas alcoólicas costuma ser expressa em unidades de etanol. Não existe um consenso sobre a quantificação, porém a mais aceita é a da Organização Mundial da Saúde (OMS), na qual uma unidade de bebida é a que contém 10 g de etanol, quantidade presente em aproximadamente 350 ml de cerveja, 150 ml de vinho e 45 ml de bebida destilada (vodca, uísque, rum, cachaça etc).

Devido aos impactos do uso nocivo dessa substância define-se o que seria um consumo moderado ou de baixo risco para desenvolver problemas de saúde: recomenda-se que homens e mulheres não excedam duas doses por dia e abstenham-se de beber pelo menos dois dias por semana. E algumas instituições orientam ainda as mulheres limitarem seu consumo a uma dose por dia.

Para ilustrar as diferentes possibilidades de interação seguem alguns exemplos:

Interações em que ocorre diminuição do efeito do fármaco

– Alguns antidepressivos têm, inicialmente, um aumento dos seus efeitos na presença de etanol, deixando a pessoa mais estimulada. Porém, após passar o efeito da bebida, a depressão e a ansiedade podem aparecer, como é o caso do Citalopram (Cipramil) e da Fluoxetina (Prozac). No caso da Sertralina (Zoloft), embora não haja contraindicação expressa ao uso de bebidas na bula, o etanol compete pelos receptores do fármaco no cérebro o que pode diminuir o efeito esperado do medicamento.

– O anticonvulsivante fenitoína (Hidantal), tem o seu efeito diminuído pelo mecanismo do metabolismo e pela diminuição da sua absorção na presença do etanol, o que aumenta o risco de convulsões.   

– Em situações de abuso em que a ingestão corresponder a um grande volume de líquido (de cerveja, por exemplo), a sobrecarga hídrica aumentará a filtração renal e a diurese, o que pode acelerar a eliminação renal e diminuir o tempo de ação e o efeito de alguns antimicrobianos, como a Penicilina G benzatina (Benzetacil);

– Os anticoncepcionais, assim como os anabolizantes e corticoides têm o seu tempo de ação diminuído de 24 para cerca de 12 horas na presença de etanol, deixando o usuário sem proteção e com consequente falha no efeito.

– A dipirona pode potencializar o efeito do etanol e este, por sua vez, aumenta a velocidade de eliminação da dipirona, fazendo o seu efeito diminuir.

Interações em que ocorre aumento do efeito do fármaco

– Os seguintes medicamentos podem apresentar interações sinérgicas com o etanol, aprofundando a depressão central, com sedação aumentada, depressão respiratória, falência cardiovascular, hipotermia, prejuízo de coordenação motora e de memória, risco de quedas, pelo que deve ser evitada a utilização simultânea: antidepressivos como a Amitriptilina (Amytril), Imipramina (Imipra, Tofranil); antipsicóticos como o Haloperidol (Haldol), a Clozapina (Leponex) e a Risperidona (Risperdal); hipno-sedativos e ansiolíticos benzodiazepínicos como o clonazepan (Rivotril), Midazolan (Dormonid), Alprazolan (Frontal); analgésicos opióides como o Tramadol (Tramal); anticonvulsivantes como a Carbamazepina (Tegretol), o Fenobarbital (Gardenal), a Fenitoína (Hidantal) e a Lamotrigina (Lamictal);

– A administração de etanol antes e depois do uso de metilfenidato (Ritalina) aumenta, significativamente, as concentrações plasmáticas do medicamento com consequente aumento do efeito estimulante. Essa manifestação é mais relatada por mulheres do que por homens;

– Anti-hipertensivos como o Captopril (Capoten), Enalapril (Renitec) e Atenolol (AbloK), entre outros, têm o seu efeito hipotensor aumentado e a pressão arterial pode cair mais do que o desejado, podendo ocorrer dor de cabeça, tonturas, desmaios e alterações na frequência cardíaca;

– O uso de etanol aumenta a frequência das reações adversas centrais da Ivermectina (Revectina) como dor de cabeça, insônia, tontura, vertigem, crise convulsiva e hipertermia;

– O etanol inibe a via metabólica da formação de glicose e acentua os efeitos hipoglicemiantes da Glibenclamida (Daonil), Glimepirida (Amaryl) e Metformina (Glifage) com diminuição acentuada do açúcar no sangue produzindo tontura, tremor, confusão, diminuição da coordenação motora e da concentração. O uso agudo do álcool prolonga os efeitos da insulina, enquanto o uso crônico inibe a ação de outros antidiabéticos.

Interações em que ocorre mudança do efeito do fármaco

– Aumento do risco de convulsão quando se utiliza bebidas alcoólicas e o antidepressivo bupropiona (Zetron);

– Os efeitos do etanol sobre a Sibutramina (Reductil) são o aumento da frequência cardíaca, dor no peito, alterações da pressão arterial, tontura, sonolência, depressão e dificuldade de concentração;

– Antidepressivos como a Selegilina (Niar), a Moclobemida (Aurorix) e a Tranilcipromina (Parnate) têm aumento do efeito hipotensor, tontura e vertigem após doses relativamente pequenas de bebidas alcoólicas;

– O álcool é uma substância irritante para a mucosa gastrointestinal e o seu uso concomitante com os antibióticos como a Azitromicina (Zitromax) e a Amoxicilina (Amoxil) leva, frequentemente, a quadros de dor abdominal, vômitos, náuseas e diarreia;

– O uso continuado de bebidas alcoólicas acentua a tendência de sangramento digestivo decorrente do uso de Ácido Acetilsalicílico e antiinflamatórios não-esteroidais (Ibuprofeno, Naproxeno, Diclofenaco e Celecoxibe), porque destroem a barreira de muco gástrico;

– O álcool aumenta a probabilidade de hepatotoxidade, irritação gástrica e risco de hemorragias gástricas quando utilizado com Paracetamol (Tylenol), Naproxeno (Flanax) e Nimesulida (Nisulid);

– O uso de bebidas alcoólicas durante o tratamento com o Lansoprazol (Ogastro) e Omeprazol (Losec) aumenta o risco de irritação gástrica.