A distração como fuga de si mesmo

Por Ana Lúcia Sampar

A nossa atual modernidade foi chamada pelo sociólogo Zygmunt Bauman (2001), de modernidade líquida. Somos a geração da tecnologia, das novidades digitais, do consumismo, do individualismo, do imediatismo, das redes sociais, e dos produtos e relações descartáveis. Essas questões nos influenciam a acreditar que um dos maiores objetivos da vida humana na atualidade é destruir a quietude, o silêncio interior. Ao longo do tempo aprendemos a nos distrair com muita tecnologia e informações nas mídias e redes sociais. Muitos de nós não conseguimos mais ficar sozinhos, estamos sempre em busca de algo para nos distrair. Buscamos nos envolver em diversos tipos de atividades, projetos e relacionamentos que nos mantenham distraídos de nós mesmos o tempo todo, mas que, muitas vezes, como o passar do tempo, nos trazem tédio, falta de sentido e vazio existencial.

No primeiro momento, a distração cumpre a sua função de nos mantermos fora das nossas questões interiores indesejáveis, mas o que esse hábito pode nos trazer a longo prazo caso o pratiquemos sem consciência?

Segundo o filósofo francês Blaise Pascal (2011), o inferno não é o outro, o inferno somos nós mesmos. A maioria das pessoas não consegue estar quietas consigo mesmas, pois seus eus trazem o traço do vazio, da necessidade de estarem no barulho, da dificuldade de mergulharem em si mesmas e se encontrarem. Para ele, as pessoas buscam a agitação, uma vez que não conseguem ficar só consigo mesmas. São incapazes de refletirem sobre a sua condição humana, sobre as suas reais ou falsas necessidades, repletas de desejos, dor, medos, inseguranças, angústias e ansiedades. Não conseguem se consolar ou se satisfazerem consigo mesmas, e tampouco conseguem se satisfazerem nas distrações que buscam no mundo.

Muitos não suportam o silêncio ou estar consigo mesmos, precisam do barulho e da agitação. São incapazes de desligar a TV, o rádio, o celular, as redes sociais ou outros meios de distração quando estão sozinhas em suas casas. Procuram fugir da quietude como se ela representasse o pior dos tédios. Por causa da necessidade que muitos trazem de se distrair, a maioria não consegue ter uma experiência bem definida das suas verdadeiras necessidades, tem dificuldade de saber o que sente de verdade ou o que verdadeiramente quer.

Como podemos nos conhecer na nossa profundidade se buscamos o tempo todo as distrações ou o barulho da mente?

Por fazerem escolhas sem conhecerem as suas verdadeiras necessidades, sem que percebam, muitas pessoas podem distanciar-se do seu verdadeiro eu e tornarem-se insatisfeitas, solitárias, entediadas, ansiosas, dentre muitos outros estados afetivos ou emocionais negativos, podendo cair na apatia, na constante insatisfação ou resignação.

A forma como nos relacionamos com a quietude ou com o barulho do mundo diz muito sobre nós. Podemos estar em paz conosco, ou podemos nos achar tão insuportáveis que a companhia de nós mesmos pareça algo tão ruim que precisamos desesperadamente nos ocupar com algo, para não ter que lidar com o que não gostamos em nós.

Para Pascal (2011), o homem vive um dilema: ama imensamente a si, mas não suporta o seu eu imperfeito. É preciso “criar um engodo” para se suportar, é preciso se distrair para dar conta de si mesmo.  Para ele, é muito difícil admitir as suas fragilidades, misérias e imperfeições. É preciso criar máscaras para que os outros não vejam o seu eu imperfeito. Ele acredita que o seu eu verdadeiro não consegue atrair a admiração e o amor do outro como idealiza. Necessário se faz esconder o seu eu de si mesmo e dos outros.

Afirma Pascal (2011):

“O homem quer ser grande e acha-se pequeno;

Quer ser feliz e acha-se miserável;

Quer ser perfeito e acha-se cheio de imperfeições;

Quer ser o objeto do amor e da estima dos homens, e vê que seus defeitos só merecem deles aversão e desprezo”, seus sentimentos de inferioridade e superioridade estão sempre se chocando.

O homem vive em constante conflito entre aceitar-se ou não se aceitar como realmente é. Para não enxergar o seu eu real, é preciso disfarçá-lo ou buscar escondê-lo não somente do conhecimento que ele tem de si, mas também do conhecimento que os outros têm do seu interior, uma vez que toda reprovação alheia é como se fosse um atestado do seu eu como um nada. Quando alguém nos julga ou nos critica, logo são disparados gatilhos de ansiedade, medo, insegurança ou angústia. Eis a “ameaça de morte” do seu eu.

Da mesma forma que o seu ego joga-se para o fora buscando possuir os bens exteriores, riquezas, conhecimentos, poder e status para não ver o seu vazio, também busca fazer da sua identidade um Deus para si próprio e para os outros. O eu põe-se fora de si mesmo, lança seu olhar para o mundo, para não mais perceber as suas misérias, e para não correr o risco de cair no nada. É preciso buscar as distrações, ou buscar aprovação dos outros para não ter que olhar para essa falta. Assim, a pessoa se prende às necessidades de ser amada, estimada, reconhecida, valorizada, elogiada, validada, apoiada, e amparada pelos outros, para sentir-se de valor. Quando essa busca não vem, é necessário distrair-se para não ter que enfrentar essa dor.            

Segundo Pascal (2011):

Quanto mais o eu se toma por Deus, mas distante de si ele permanece.

Quanto mais o eu quer ser perfeito, mais imperfeito se torna.

Quanto mais se persegue o ideal do eu, mais falso torna-se.

Essa eterna busca pelo eu ideal nos faz olhar de forma ilusória sempre para o exterior, para o fora de nós, na tentativa de encontrar a nossa satisfação interior. Mas, caímos na armadilha da distração. Precisamos estar atentos quanto ao como usamos as distrações para a nossa vida: Estamos nos distraindo de forma saudável ou adoecedora?

Estarmos constantemente distraídos nos faz afastar das nossas verdadeiras potencialidades, forças, necessidades, e recursos internos.  Perdemos a oportunidade de conhecer a verdadeira essência e autenticidade interna. O silêncio interior, em algumas ocasiões, abre o espaço para a criatividade, para o surgimento de novas ideias e para a conexão com o verdadeiro eu interior.

Se usamos as distrações de forma a nos tirar do foco do que somos, da realidade e dos sofrimentos, então podemos estar diante de mecanismos de defesa que com o tempo podem nos fazer distanciar das nossas verdadeiras emoções e sentimentos e nos levar ao entorpecimento ou anestesia da vida.

Referências:

PASCAL, B. Diversão e tédio. 2011. São Paulo: Martins Fontes.

________ Pensamentos. 2. ed. Tradução Sérgio Melliet. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção “Os Pensadores”)

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. 2001. Rio de Janeiro: Editora Zahar